Estou aqui passando pelo Saga para desejar um Feliz Natal e Próspero Ano Novo aos leitores e colunistas que suam a camisa para escrever resenhas e artigos que são lidos por toda parte. Obrigado Yvens Castro, Mayara Frossard, Joanice Oliveira e Felipe Marcato por fazer funcionar as engrenagens da Saga Literária. Em 2017 estaremos juntos novamente.
Gostaria de deixar a indicação de um livro para o final de ano. "Dia de Folga - Um Conto de Natal" do escritor John Boyne que ficou famoso com o livro "O Menino do Pijama Listrado".
Neste conto breve e melancólico de poucas páginas, John Boyne (autor do best-seller O menino do pijama listrado) acompanha o dia de folga de um jovem soldado inglês e seus companheiros, que passam a véspera de Natal em uma das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Enquanto relembra os natais da infância e o conforto do seu lar, ele vê e ouve as bombas alemãs caindo a sua volta. Em meio a um dos piores conflitos do século XX, o jovem irá vivenciar um espírito natalino muito diferente do que estava acostumado.
Confiram textos do livro:
Hawke, um lobo em forma
de gente, emergiu da floresta engatinhando e tirando agulhas de pinheiros das
palmas das mãos. Seu casaco estava impregnado de uma resina vegetal pegajosa
que exalava um aroma adocicado, um perfume que lembrava os jardins do Hyde Park
Square, nos fundos de sua casa, onde ele havia se escondido do pai em diversas
ocasiões quando criança. Ele rastejava pela mata fechada, com a visão se
ajustando para examinar o espaço aberto à sua frente. Era noite, agora. Ele
estava cansado e faminto. Não comia nada desde aquela manhã em que Cole lhe
dera uma lata de carne em conserva roubada da mochila de Westman, uma gosma
vermelha e gordurosa vazando da embalagem metálica, que o fazia lembrar dos
crânios partidos nos corpos que ele arrastava pela lama revolvida pelas botas,
quando era incumbido de carregar a maca. Isso é trabalho de desertor, ele
reclamava, mas ninguém lhe dava ouvidos. O próprio Westman havia levado um tiro
no olho uma hora antes; os miolos ainda estavam secando em seu rosto, formando
uma crosta nos cílios compridos, enquanto as mãos de Cole saqueavam seus
suprimentos.
Havia, é claro, duas
latas. Cole pegou uma para ele, que devorou avidamente, com um dedo lambuzado
do sangue que havia restado, misturando-se ao seu próprio enquanto ele o
chupava, os olhos fechados de prazer. Ele deu a outra a Hawke porque gostava
dele. Eles torciam para o mesmo time de futebol, e isso já parecia ser o
suficiente para forjar uma amizade. A carne enlatada tinha um gosto podre, seu
caldo era uma gosma horrenda que empesteava o ar, mas Hawke comeu tudo antes de
vomitar na latrina. Ao seu lado, Oakley estava de pé, com o pau na mão,
escorado na parede e mijando nas próprias botas, chorando. Mas Oakley era um
chorão; todo mundo sabia disso. Ele chorava quando o sol nascia. Ele chorava
quando o tiroteio começava. Ele chorou quando chegaram as notícias de que Lord
Kitchener tinha morrido no Hampshire, e isso que ele nem conhecia o cara.
“Então você ficou sabendo do Westman?”, Hawke perguntou, mas Oakley o ignorou.
Ele não gostava de ser incomodado quando estava chorando. Terminou de mijar e
Hawke terminou de vomitar. Antes de se afastar da latrina ele disse a Oakley
para guardar o pau dentro das calças. “Se ajeita aí, rapaz”, ele murmurou.
Na Inglaterra era véspera
de Natal. Talvez fosse véspera de Natal aqui também, era difícil saber. Não
seria como os Natais de antigamente, é claro. O racionamento está brutal, a mãe
dele contou na última carta. Está nos transformando a todos em selvagens. Por
sorte eu conheço um homem no Departamento de Guerra que tem ajudado
tremendamente nesse sentido. Eles tinham oficialmente um dia de folga. Staines
começou a tocar “Noite feliz” em sua gaita, mas ninguém se interessou muito.
Shilton disse a ele pra parar ou o faria engolir aquela merda.
“Ei, Hawke”, disse
Delaney, o garoto irlandês que todo mundo chamava de Charlie Chaplin por causa
da semelhança. “O que você pediu para o Papai Noel esse ano?”
“Uma noite de sono”,
disse Hawke.
“Eu tive uma dessas
algumas semanas atrás. Mas não adiantou muita coisa. Eu
continuava me sentindo
morto quando acordei.” Por que Westman estava na floresta era o que todo mundo
se perguntava. Um grupo criminoso de alemães deve ter passado por ali e o
matado, em vez de tê-lo feito prisioneiro. Era o mais provável, mesmo. Havia
alemães por todos os lados nessa parte do mundo. Mas era difícil encontrá-los.
Westman tinha um cão sobre o qual ele falava o tempo todo. Aquilo deixava os
homens irritados. A maioria tinha esposas ou namoradas em casa, mas tudo que o
Westman tinha era um cachorro. Dava pra jurar que ele era casado com aquele
bicho, pelo jeito que falava. O cachorro tinha ficado com os pais dele em
Canterbury. Seu nome era Schubert.
Hawke tinha meias
limpas em sua mochila e havia passado o dia inteiro ansioso para vesti-las.
Mamãe as havia enviado como presente de Natal. Ela tinha colocado um pauzinho
de canela no meio delas, e ele não sabia muito bem o porquê. As meias velhas,
aquelas que ele estava tirando, estavam cobertas de sujeira e sangue e fediam
ainda mais que a carne enlatada, mas, por algum motivo, ele as aproximou do
nariz por um instante e aspirou o fedor. Ele nunca achou seu próprio cheiro
ofensivo. O cheiro de outros homens, sim, é claro. Eles eram animais, a maioria
deles. Mas o cheiro dele, não. Era uma forma de lembrar que ainda estava vivo,
ainda produzia as gosmas e mucos que um corpo humano produz durante um dia.
Queenie, sua antiga babá, costumava brincar com os pés dele quando era criança.
Havia algo de perturbador no jeito em que ela o sentava no sofá e encostava
alguns dedos em sua boca, chupando-os enquanto olhava o menino bem no fundo dos
seus olhos azuis, os mesmos que as amigas de sua mãe diziam que um dia arrasariam
corações. Este procedimento se repetiu até os seus onze anos. Papai a flagrou
certa vez e deu-lhe um tapa; algumas horas depois, ela tinha ido embora.
Arrumou um emprego no circo, ou pelo menos foi o que disseram a Hawke. Alguns
dias depois, Papai morreu. Foi atropelado na rua.
As meias limpas eram
feitas de lã grossa e cinza e não eram do modelo padrão. Mamãe as havia enviado
e, de alguma maneira, elas puderam chegar até ele sem ser confiscadas. Ele mal
podia acreditar na sua sorte quando abriu o pacote. Também havia uma carta
lá. Jane havia ficado noiva de um rapaz
que era cego de um olho. Seu nome era Harry Stanley e ele vinha de uma boa
família. Joseph já tinha tentado se alistar três vezes, mas seguia sendo
rejeitado por conta da idade. Era só uma questão de tempo, disse Mamãe, até que
algum idiota acreditasse que ele tinha dezoito, e então ele seria despachado
para a França ou para a Itália, ou para onde quer que fosse que eles mandavam
garotos irresponsáveis que não sabiam a sorte que tinham. Vovó havia morrido e
eles a tinham enterrado ao lado do vovô. O tempo estava bom, surpreendentemente
quente para essa época do ano. Ele tirou as meias velhas e choramingou
inesperadamente à medida que sua carne, seus ossos e músculos iam relaxando
devagar. Ele não sabia se aquilo o fazia sentir uma dor tremenda ou um prazer
insuportável. Mas o fez lembrar do que sentia quando passava
algumas semanas sem se
masturbar. A intensidade do orgasmo adiado. Quase impossível de suportar.
Ele olhou para os pés,
que não se pareciam mais com pés. Eram umas coisas
atarracadas, as unhas
dos dedos destroçadas e apodrecidas, as solas cobertas de bolhas, sangue negro
escorrendo das feridas abertas. Queenie não chegaria nem perto desses pés agora
se ela visse como eles estavam. Ela desmaiaria ou gritaria ou faria qualquer
coisa que mulheres estúpidas fazem quando deparam com algo desagradável.
Hawke sempre era levado
ao parque de diversões na véspera de Natal. Uma estrutura de aço, alta ,
pintada de dourado e amarelo, se erguia do chão, e presa a ela um disco rodava
e se levantava, girando tão rápido que as pessoas sentadas nos balanços presos
a ele gritavam e riam enquanto eram projetadas no ar. Uma sensação de leveza.
Um medo de cair. Hawke tinha catorze anos quando seu sapato esquerdo saiu
voando enquanto ele estava perto do topo, o céu aceso pelos fogos de artifício
como um arco-íris destroçado. O garoto sentado ao seu lado, um garoto que ele
nunca havia visto, ria porque os dedos de Hawke saíam pelos furos de sua meia.
“Você é pobre?”,
perguntou o garoto, e Hawke enrubesceu de vergonha. “Sua mãe não cerze suas
meias?”
Ele não pensava naquilo
havia anos. A lembrança havia voltado agora. Ele não cheirou as meias limpas.
Elas eram novinhas em folha; não haveria nada de errado com elas. Ele as vestiu
e enfiou os pés de volta nas botas, enrolando os tornozelos com uma faixa. Por
algum motivo, as meias novas não eram tão confortáveis quanto as velhas. Ele
ficou se perguntando se as bolhas o incomodariam mais nos dias seguintes. Dois
rapazes, Arthurs e Crouch, começaram a brigar ali perto. Um comentário havia
sido feito. Alguma grosseria. Arthurs acertou um soco no nariz de Crouch, e
Crouch soltou um grito enquanto uma grande quantidade de ranho despencava sobre
suas mãos.
“Desgraçado filho da
puta”, ele disse.
“Desculpa”, disse
Arthurs. “Mas você precisa aprender a hora de calar a boca.”
Hawke pensou em tirar
um cochilo, mas já eram quase seis da tarde. A essa hora, os corais começariam a
cantar em sua cidade. Toda a família estaria lá. Ou, pelo menos, o que sobrou
dela. Um ano antes de a guerra estourar, quando tinha dezesseis anos, ele
estava lá, e Cathy Bligh tinha pedido que Hawke a acompanhasse até sua casa,
uma vez que já estava escuro. Havia um homem nas redondezas, ela disse, um
maníaco sexual que atacava garotas inocentes.
“Então você estará
segura”, disse Hawke, sorrindo, e ela deu uma risadinha, dizendo a ele para não
deixar que o pai dela o ouvisse dizendo esse tipo de coisa. Ele fez o que ela
pediu e a acompanhou até em casa, e tentou beijá-la quando estavam perto de
chegar, mas ela lhe deu um tapa no rosto e perguntou que tipo de garota ele
pensava que ela era, afinal de contas. A coisa toda o deixou intrigado. Logo em
seguida, Cathy falaria pra todo mundo
que ele tentou se engraçar pra cima dela e seu irmão foi bater na porta
da casa de Hawke na manhã de Natal, querendo puxar briga.
“Se você quer brigar,
vamos lá”, Hawke disse calmamente, saindo de dentro de casa e arregaçando as
mangas, com um cigarro pendurado na boca. “Só que longe da minha irmã, ouviu?”,
o garoto respondeu, agora apavorado e derrotado. “Ou vai ver só o que te
espera.”
Hawke deu de ombros e
voltou pra dentro de casa, onde Jane disse a ele que a coisa toda tinha sido
eletrizante demais pra ser posta em palavras. Agora era um momento perigoso. Se
cochilasse, ele acordaria por volta das duas da manhã e provavelmente não
dormiria mais. Não, era melhor que ficasse como estava. Ele dormiria às nove.
Talvez às oito e meia, se o sol se pusesse rápido.
O sargento passou por
ali e perguntou se Hawke tinha visto seu livro.
“Não o vi, senhor.”
“Não viu?”
“Não, senhor.”
“Bom, me avise se você
o vir.”
“Qual é o título?”
“Não faço ideia. Alguma
coisa sobre um órfão. E tem uma mulher nele que é
terrivelmente
grosseira.”
Hawke não era muito de
ler. Livros o entediavam, ainda que ele não admitisse para ninguém, pois isso o
faria parecer ignorante. Não, seu negócio era a escultura. Ele gostava desde
criança, quando moldava corpos nus com argila. Ele tinha a impressão de que
seria muito bom esculpindo em pedra ou
mármore, mas ainda não havia tido a oportunidade de testar. Depois da guerra,
ele dizia a si mesmo, ele tentaria. Ele conhecia um cara na sua cidade, Bestley,
cujo pai administrava uma galeria de arte na Cork Street. Ou o Bestley tinha
morrido? Ele tinha ouvido algo do tipo? Ele tinha morrido no Arabis em Dogger
Bank? Bom, seu pai provavelmente estaria vivo, de qualquer jeito. Talvez ele
desse uma passada lá na próxima vez que
estivesse em Londres para pedir uns conselhos. Talvez houvesse um camarada lá
que pudesse dar umas aulas a um amigo. Mostrar a ele como começar.
Mas ler? Não, aquilo
não o interessava muito.
Ele decidiu fazer um
chá. Bellamy estava na barraca-refeitório, rabiscando um pedaço de papel com um
lápis.
“Escrevendo pra
família?”, perguntou Hawke.
“Minha mulher teve um
bebê”, respondeu Bellamy. “Acabo de receber a notícia.”
“Puxa, que bom pra
você.”
Bellamy o encarou. “Faz
um ano que não volto pra casa.”
Hawke se segurou pra não
rir. “Sinto muito”, ele disse, olhando em volta e franzindo a testa. “Não estou
achando o chá.”
“Eu tomei o último.”
Alguns galhos de
azevinho estavam dispostos perto de uma sacola. De onde eles tinham vindo?
Ele estava impaciente
agora. Esse era o problema dos dias de folga. Eles eram tão raros, e você
esperava tanto por eles, mas quando eles chegavam, seu corpo estava tão
acostumado a se mover constantemente que era quase impossível relaxar. A
floresta ficava ali perto. Ele decidiu dar uma caminhada. Ele pôs seu capacete
e levou seu rifle, caso os alemães que mataram Westman ainda estivessem por
ali.
“Aonde você vai?”,
perguntou Sumpton.
“Entregar uns
presentes”, disse Hawke. “Para todos os garotinhos e garotinhas que se
comportaram bem.”
Foi prazeroso
afastar-se do batalhão, entrar na floresta sozinho. Ele ficou pensando naquela
canção de Natal, “O Holy Night”. Ele sempre gostou daquela música. Na véspera
daquele último Natal, um garoto que morava na vizinhança, cuja voz ainda não
havia mudado, tinha cantando ela sozinho, e quando chegou na parte em que havia
uma mudança de tom, ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A música às
vezes o afetava desse jeito. Mamãe disse que os corais agora só tinham garotos
soprano e mulheres, uma combinação estranha. E o buffet era simplesmente
horroroso, ela escreveu. Ela iria novamente este ano; provavelmente estava lá
agora, com seu homem do Departamento de Guerra, fosse ele quem fosse. Bastavam
alguns pares de meia-calça ou uma barra de chocolate e pronto, Mamãe era de
novo uma mulher jovem e atraente. No passado, Papai e Mamãe sempre faziam do
Natal uma festa com muita dança e cantoria. Eles tratavam aquilo como se fossem
crianças. Mesmo quando ele próprio era uma criança, Hawke sempre achou que
aquilo tudo era muito barulho por nada.
O som dos galhos se
esmigalhando sob suas botas o agradava, e ele pisou com mais força por algum
tempo, sem pensar nos alemães. Então ele se lembrou e pensou, ah, que se dane.
E continuou pisoteando.
Alguma coisa estalou em
sua mente e ele percebeu que estava cheio daquela maldita guerra e decidiu não
voltar. Ele simplesmente continuaria andando. As pessoas faziam esse tipo de
coisa, ele se perguntou? Deserção não premeditada? Ele não estava levando nada
com ele, nada de suprimentos, de casaco mais pesado, de modo que todos ficariam
surpresos. Talvez eles até mesmo presumissem que ele tivesse sido pego pelo
inimigo na floresta. Os alemães de Westman talvez o tivessem capturado. Não
havia nada que desse qualquer sinal de uma deserção real. Na verdade, ele
percebeu, esse era provavelmente o melhor jeito de fazê-lo.
Ele começou a
gargalhar. Aquilo era bem engraçado, levando tudo em consideração. Num minuto
ele estava sentado, sem fazer nada, e no seguinte ele era um desertor da Força
Expedicionária Britânica. Ele conhecia alguns. Browne e Peace tentaram fugir um
dia e foram flagrados, nos braços um do outro, há alguns quilômetros de
distância, escondidos num celeiro. Eles foram trazidos de volta e fuzilados. O
sargento disse a eles que parassem de ficar de mãos dadas e morressem como
homens, mas eles o mandaram se foder e então as balas voaram. Bancroft também
tinha sido fuzilado, mas ele não havia desertado, é claro. Ele abaixou suas
armas depois daquela história com o garoto alemão na trincheira e disse me
desculpe, mas estou de saco cheio dessa loucura.
Isso significava que
ele jamais poderia voltar para casa? Que ele nunca conheceria o noivo
cego-de-um-olho de Jane? Nunca mais responderia nenhuma das cartas de Mamãe?
Não, afnal de contas, a
guerra não podia continuar pra sempre. Aliás, ela já tinha durado tempo demais.
Mas, pera aí, só porque a guerra talvez terminasse algum dia isso não
significava que os desertores seriam perdoados e esquecidos, não? Será que
haveria algum tipo de anistia? Pouco provável. Ele balançou sua cabeça. Não
podia pensar em tudo aquilo agora. Ele tinha tomado uma decisão. Claro que o
problema era que ele não sabia exatamente onde estava. Ele não estava sequer
totalmente convencido de que sabia que país era aquele. Dava pra reduzir a uns
dois ou três, é claro, mas seria difícil apontar o certo a partir daí. Para
onde ele deveria ir? Suíça, ele supôs. Era pra lá que todo mundo ia, não era?
Ele poderia ajudá-los a proteger a fronteira no Jura. Ou simplesmente se
esconder do outro lado.
A clareira à sua frente
não fazia muito sentido. Parecia uma plantação após uma
colheita no meio dos
incontáveis acres de uma floresta. Ele poderia atravessá-la, mas as árvores do
outro lado talvez se estendessem por várias centenas de quilômetros. E se isso
fosse verdade, ele estaria marchando ao encontro da própria morte. Aquilo não
pareceu incomodá-lo tanto assim e ele ficou preocupado que talvez estivesse
ficando louco. Uma coisa dessas deveria
incomodá-lo, afinal de contas.
Ele ouviu um farfalhar
às suas costas e se agachou, enterrando-se na vegetação
rasteira. Um pássaro
saiu voando de um galho, seguido de outro; mais adiante havia algo mais pesado,
fazendo mais barulho. Ele empunhou seu rifle e se aproximou pisando com força,
esperando por uma raposa ou talvez algo mais maligno. Mas nada apareceu, e ele
relaxou novamente, pendurando o rifle de volta no ombro.
Ele seguiu caminhando,
observando a lua crescente, e estimou que devia ser por volta de nove da noite.
Mamãe, Jane e Joseph estariam em casa agora, pendurando meias na lareira. O
homem do Departamento de Guerra deveria estar lá com eles, sendo alvo dos
olhares frios de Joseph. Os empregados estariam começando os preparativos para
o café da manhã de Natal. Os que ainda estivessem lá, é claro. Ele tinha topado
com William, que havia trabalhado para eles durante sete anos, quando os
caminhos dos seus batalhões se cruzaram alguns meses antes.
“Olá, William”, ele
disse. “Bom te ver por aqui.” William havia batido na porta do seu quarto tarde
da noite, certa feita, quando ele tinha dezessete anos, e perguntado se havia
alguma coisa que poderia fazer por ele. Hawke balançou a cabeça, surpreso.
“Nada, obrigado”, ele
disse.
“Tem certeza, senhor?”,
perguntou William.
“Absoluta”, disse
Hawke. “Acho que vou entrar agora. Boa noite, William.”
Demorou meses até que
ele entendesse o que tinha acontecido e, quando finalmente entendeu, ele quis
desesperadamente contar pra alguma pessoa, mas não conseguiu pensar em ninguém.
Ele ficou com a sensação de que talvez não fosse sair muito bem daquela
história.
“É, soldado Hinton,
soldado Hawke”, disse William, quando eles se encontraram na trincheira,
tirando o cigarro da boca e examinando a bituca. “Nós somos iguais, eu e você.”
Ele pensava no ganso,
agora, e nas batatas assadas. Nos nabos, na couve-de-bruxelas e no faisão.
Tortas de fruta, creme irlandês e molho de pão. Mamãe pedindo mais vinho e
contando a eles a história de como, quando era jovem, um amigo do seu irmão a
havia levado sentada na barra da bicicleta até a igreja para a missa da manhã
de Natal, um escândalo do qual ela levou meses para se recuperar. Papai, quando
ainda era vivo, propondo um brinde ao Rei. A vez em que Jane engasgou com um
osso de peru. A manhã em que Joseph deu um chilique quando acabou de abrir os
presentes. Será que eles estavam pensando nele agora, ele se perguntou?
À sua frente, vozes.
Seu rifle se ergueu mais uma vez. Ele parou e ficou escutando, atento ao
sotaque alemão, suas palavras ásperas, os sons guturais que se formam no fundo
da garganta. Seria tão ruim assim ser feito prisioneiro? Ou levar um tiro? Ele
tinha visto aquilo acontecer tantas vezes e geralmente acabava numa questão de
segundos. Era difícil imaginar que você sentiria dor. Caso acontecesse, ele
preferia ser alvejado no peito. Ele não gostava da ideia de ter sua cabeça
rachada ao meio. Ele ficou em dúvida sobre que caminho seguir, as árvores o
cercavam, ele sentiu-se claustrofóbico. Marchou em frente; decidiu correr o
risco.
McGregor, com um gorro
vermelho na cabeça. Um gorro de Papai Noel. De onde ele tirou aquilo? Oakley,
pela primeira vez sem chorar, estava sentado, olhando para o nada. Summerfield
distribuía pedaços de marzipã, uma guloseima natalina.
“Algo a relatar, Hawke?”,
perguntou o sargento, e ele sacudiu a cabeça. Ele tinha voltado pro lugar de
onde havia partido. Ele olhou para suas botas; elas o tinham traído. Que ano
mesmo era esse que estava chegando? Isso não poderia durar mais muito tempo,
não é? Aquela coisa toda já estava ficando ridícula.
“Achei que você tinha
dado no pé quando não conseguimos encontrá-lo”, disse o
sargento.
“Eu, senhor? Não,
senhor.”
“Só estou brincando,
Hawke. Não leve tudo tão a sério. Por que não come um pedaço de marzipã?
Summerfield, venha aqui e dê um pedaço de marzipã pro Hawke. Sabe, minha mãe
fazia marzipã toda Noite de Natal. O cheiro se espalhava pela casa inteira. Uma
lembrança maravilhosa.”
Hawke pegou um pedaço e
deu uma mordida, o sabor das amêndoas e do mel adocicando sua saliva. Ele
entrou na trincheira e seguiu por ela até um buraco vazio, colocou o rifle ao
seu lado e se encostou na parede, fechando os olhos. Sons à distância, através
dos campos, além das escadas e do arame farpado, o gramado revolvido, a lama
ensanguentada. Botas dançando nos estrados de madeira. O tiroteio começando, as
armas disparando. O barulho dos homens quando caíam em suas linhas. Era véspera
de Natal e não haveria folga para os ímpios. Ele pegou seu rifle mais uma vez e
ajeitou o capacete na cabeça. Ele precisava chegar à escada número cinco. Não
havia tempo a perder. Bombas explodiam no céu sobre sua cabeça, um dos maiores
shows de fogos no planeta. Melhor estar aqui do que numa floresta sozinho, ele
pensou, quando pôs sua bota no degrau e começou a subir, sem hesitar enquanto
se jogava para cima, ficava de pé e começava a atacar.
É uma bela visão, ele
pensou, enquanto o campo se acendia à sua frente como se fosse a entrada para
outro mundo. A gente não vê esse tipo de coisa em casa.
John Boyne
John Boyne nasceu na
Irlanda, em 1971, e mora em Dublin. Escreveu diversos romances que já foram
traduzidos para mais de quarenta idiomas. Seu livro mais célebre, O menino do
pijama listrado (2007), lhe rendeu dois Irish Book Awards, vendeu mais de 5
milhões de exemplares pelo mundo e foi adaptado para o cinema em 2008.
http://www.johnboyne.com/;
https://twitter.com/john_boyne
2 Comentários
Feliz Natal para toda a equipe da Saga Literária.
ResponderExcluirBeijos,
Blog Gaby Dahmer ♥ Fanpage
Obrigado Gaby Dahmer, a equipe Saga Literária deseja um maravilhoso final de ano para você, feliz 2017.
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